Você sente falta de você mesmo?

Já vai para cinco meses que marido e eu chegamos aqui nos states, e já há algum tempo tenho me sentido tão bem aqui. O começo foi terrivelmente difícil, o que me surpreendeu bastante. Afinal, eu já havia morado fora do país antes outras duas vezes, em lugares mais esquisitos, mais caros, mais complicados, nos quais me faltava fluência na língua nativa, e mesmo assim tudo tinha corrido bem. Por que era então que a transição para cá estava sendo tão difícil, tão sofrida, e meu começo aqui, quase enlouquecedor?




Eu descobri por quê.

E descobrir o real motivo não foi fácil. Sim, porque havia vários outros motivos que alguém poderia racionalizar que seriam perfeitamente aceitáveis para explicar a razão para eu me sentir mal: a mudança de país, a saudade dos que ficaram, o início de uma vida nova, a falta das minhas coisas, o não saber me locomover na cidade, a falta de conhecidos por aqui, a noção de que a mudança era definitiva, o não saber dirigir por aqui ainda, as diferenças culturais, o fuso horário, o calor do alto verão no qual chegamos, etc etc etc.

Por um tempo (um mês e meio, mais ou menos) eu fiquei querendo resolver o mal estar cuidando de todos os aspectos práticos que mencionei acima. Aspectos com os quais, não me entendam errado, eu teria que lidar mesmo de qualquer jeito - mas que não eram a causa do mal estar. Achava que não me sentia em casa porque faltavam enfeites e alguma decoração na casa e lá ia o marido me levar pra comprar porta-retratos, almofadas e plantinhas. Achava que era porque me sentia presa em casa e lá ia o marido descobrir como faríamos para conseguir o tal do documento que estavam pedindo pra que eu pudesse tirar carteira de motorista. Achava que era porque não estava fazendo nada e lá ia o marido me matricular na aula de piano, me comprar um teclado, e me incentivar a tocar.

(Ainda bem que meu marido é uma dessas raras pessoas sãs e equilibradas, senão era capaz dele ter ficado doido junto comigo.)

Então eu fazia que fazia coisas... E claro, cada coisa que eu resolvia melhorava aquele aspecto da minha vida - mas não meu sentimento interior. O mal estar continuava. Eu ouvia um silêncio interminável dentro do apartamento e me sentia eternamente incomodada.

Até que numa madrugada... Eu abri os olhos totalmente desperta às 3:33am. (um horário bem simbólico, mas isso é assunto pra outro post) Então caminhei até minha mesinha, liguei a luminária, abri meu diário e comecei a escrever frenéticamente.

Ah, sim. Também tinha essa: eu, que sempre escrevi diários desde os 7 anos de idade, não vinha conseguindo escrever desde um mês antes da mudança pra cá. Uma coisa significativa isso, e vocês já vão ver por quê.

No meio da madrugada, debruçada na escrivaninha eu escrevi, escrevi e escrevi por quase duas horas sem parar. O conteúdo? Todas as coisas nas quais vinha me proibindo de pensar.


O caso é que meu processo de mudança para cá foi um tantinho sofrido. Tínhamos mil providências a tomar e muito pouco tempo, então tive que entrar num modo "resolvedor de coisas", e me recusei a me deixar sentir preguiça de fazer as coisas, canseira de passar dias inteiros de fila em fila resolvendo burocracias, ou até raiva dessas coisas serem tão chatas. Me recusei a reclamar de qualquer coisa porque não ajudaria ninguém, e como esta estava sendo uma oportunidade tão boa para marido e eu, não me permiti achar qualquer coisa que envolvesse a mudança ruim.



A vinda pra cá era tão importante que a Simone adulta achou que muito corretamente estava colocando o que verdadeiramente importava em primeiro lugar. Só que tinha algo de muito errado no que eu fiz: ao não me permitir sentir as coisas como elas eram, eu não estava simplesmente colocando o que era importante em primeiro lugar. Eu estava colocando o que era importante em único lugar. O erro estava ali.



E aí não importava o que estivesse acontecendo, era da vinda pra cá que eu cuidaria. Por isso viajei com dengue para Recife, mal aguentando puxar minha mala pelo aeroporto, para a entrevista para o visto, me recusando até a reclamar da dor. Por isso fechei minhas caixas frenéticamente em casa, me recusando a me sentir saudosa. Por isso corri para almoços e jantares me despedindo de amigos me recusando a chorar ou sentir a tristeza da despedida. No meio de tudo, ainda tenho uma grande decepção familiar da qual, como já aconteceu antes, eu não fui a culpada (muito pelo contrário) mas ainda tive que tomar a iniciativa de ir atrás pelo bem geral da nação e porque não poderia viajar brigada etc etc. E tome de despedir de gente, tendo eu que consolá-los pela minha partida. E tome de explicar o por quê da minha partida de repente (também não tive nada a ver com isso), e tome de despedir, despedir, explicar, explicar, resolver, resolver. E com tudo isso, e por conta de eu ter um objetivo muito maior em vista, eu me recusei a trabalhar os sentimentos, a sentir as coisas, a pensar sobre tudo, a elaborar...

... e de repente, eu estava a quilômetros de distância de mim mesma.

E era disso que eu sentia tanta falta assim que tinha chegado aqui: de mim mesma.

E só vim a perceber quando cheguei, já que antes era tanta coisa pra fazer que não daria tempo mesmo de notar.

Estou contando tudo isso porque sei que tem gente que passa a vida toda indo de atividade em atividade, de distração em distração, no modo "resolvedor de problemas" e que está completamente distante de si mesmo. E meu deus, é um sentimento TERRÍVEL. Passar a vida toda assim deve ser de um vazio enlouquecedor. Eu não estive em contato comigo por uns dois meses, e quase fiquei doida. Não me admira que tenha tanto doido por aí no mundo fazendo as coisas mais esquisitas. Eu senti na pele o que é estar desconectado de sua própria essência. É horrível. É o sentimento mais solitário do mundo.






De camisola, tendo escrito por horas a fio, eu senti um grande alívio. E apesar de finalmente ter escrito com todas as letras as coisas todas para as quais eu estava com tanto medo de olhar, eu não me sentia pior por ter encarado os monstros: eu me sentia infinitamente melhor. Eu estava de volta ao meu elemento. E me sentia em paz.

Naquela noite, eu caminhei em passos lentos no silêncio do apartamento escuro de volta ao quarto. Na cama, meu marido dormia um sono profundo em sua paz habitual. Devagar para não acordá-lo, entrei na cama, abracei-o pelas costas, e caí num sono profundo. E nunca um travesseiro foi tão macio ou uma cama, tão confortável.
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Comentários

  1. Adorei o seu artigo-desabafo. Espero, realmente, que um dia eu consiga descobrir em mim o que me falta, os meus sonhos... um dia chego lá, assim como vc. Tudo de bom pra vcs aí, beijocas, Joema

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  2. Oi, Joema! Quanta honra ter você por aqui! E pois é, essa questão de descobrir a nós mesmos é uma tarefa pra vida toda... Beijão!

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  3. Poxa amiga, entendo perfeitamente tudo isso que voce passou e fico muito feliz por voce ter conseguido se encontrar de novo! Voce sempre foi tao maravilhosa como amiga, que desejo que isso nunca mais aconteca com voce! E se algum dia o diario ficar pequeno pra voce botar os seus monstros, pode me ligar ou escrever que vamos compartilha-los juntas!!! E se precisar bater em alguem, me chama! rsrsrs Saudades... fica bem! bjs

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  4. Simplesmente lindo!!!
    Sds, Bruna

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  5. Jah me senti assim... Alias, volta e meia me sinto assim
    ... Acho q eh saudades da minha cidade, da minh familia. Sei lah.. Eh dificil, mas eh preciso acender essa luzinha que liga Mariana a Mariana....
    Ainda naum aprendi o caminho mas nao me canso de procura-lo.

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  6. Cris! Com certeza conto com você amiga, pra ligar, desabafar, conversar horas e horas a fio... Saudades também!!

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  7. Brunets, você por aqui!! Que honra ver essa minha amiga global que nunca tem tempo dando as caras no meu bloguinho! Volta sempre, tá? Saudades de você!

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  8. Oi, Mariana! Como assim, "é preciso acender uma luzinha"? Como você faz isso? Algum jeito específico? Essa coisa de mudar de cidade nunca é fácil, né? Você mudou tem tempo? Adaptou legal na cidade nova? Beijos!

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  9. Oi Simone, estava lendo seu blog e me deparei com este post e me identifiquei em alguns sentimentos e eu tenho certeza que todo mundo que leu também. As vezes, quando me sinto longe de mim mesma eu procuro Deus pra me preencher e me fazer me encontrar. Sempre funciona quando leio a Bíblia, encontro um caminho nesse meu EU perdido e muita paz naquelas palavras. Beijão e um grande abraço.

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  10. Oi, Nayara! Realmente, a Bíblia e tudo que é espiritual pode nos ajudar mesmo nessa caminhada em busca de nós mesmos... Obrigada pela visita no blog e também pelo comentário! Volte sempre! Beijão!

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  11. oi Simone, me refiro a essa conexão com o que realmente eu quero, MEUS sonhos... porque acho q passamos, sem perceber, a viver os sonhos dos outros... e nos deixamos de lado.

    Me mudei pro RJ, porque meu marido, q na época ainda não era marido, conseguiu uma transferência. Já estamos no RJ a 4 anos e ainda não me sinto em casa. Gosto muito daqui. Da vitalidade que a cidade tem. Do povo tão cheio de amor a vida!!! Do cheiro de mar! Mas, é difícil!!!Complexo!!!

    E a vida caminha né... nem sempre do jeito que eu planejo na minha cabecinha virginiana... oque me deixa louca!!!

    Maaaaas, é isso aí, a vida é uma eterna busca mesmo.

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  12. Tem razão. É fácil às vezes a gente se deixar levar tantando atender às expectativas alheias e não às nossas próprias... Mas, por que será que mesmo depois de 4 anos numa cidade você ainda não se sente em casa? Já parou pra pensar exatamente o que significa "casa" pra você? Pode ser um conforto no lugar onde mora, ou talvez se sentir parte de uma comunidade, ou então conhecer todo mundo onde mora, ou ter família perto... Porque aí, a partir do momento em que você identificar o que é "casa" pra você, pode ir atrás de conseguir essas coisas aí no Rio...
    Bjs!!

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