O paradoxo da organização

 No condomínio onde estou morando são feitas inspeções regulares nas quais visitam os apartamentos para checar se os detectores de fumaça, sprinklers etc de cada casa estão funcionando bem. Quando muda a empresa que administra o condomínio, pode saber que lá virá outra inspeção. Por conta disso, num espaço relativamente curto de tempo, fomos inspecionados três vezes. E acontece assim: dias antes deixam um aviso embaixo da porta avisando o dia e o turno em que virão. E o pedido de que, caso o morador não for estar em casa, que deixem animais de estimação presos, já que assim como em hotéis, aqui também eles tem uma chave mestra que tudo abre. Estou contando isso pra dizer que esse pessoal entra em absolutamente todos os apartamentos do condomínio, esteja a pessoa em casa ou não, e que uma vez dentro do apartamento, olham todos os cômodos - banheiros e closets inclusive. Ou seja, ao completar uma inspeção, eles tiveram a oportunidade de ver the good, the bad and the ugly. Ou então, o "paraíso" - que foi como chamaram aqui em casa.

 Achei curiosíssimo que a reação dos três grupos (pessoas diferentes) foi praticamente a mesma ao entrar aqui: choque, espanto, incredulidade. E não porque a casa estava bagunçada. Para minha surpresa, o espanto se deu justamente porque a casa estava - oh, meu deus - limpa e arrumada.
 E longe do meu apartamento ser alguma perfeição. Pra se ter uma ideia, quem cuida de todos os afazeres dométicos sou eu - a mesma que assiste milhões de filmes, acompanha trocentos seriados, lê um livro atrás do outro, troca longos e-mails com alguma frequência com um monte de gente, vive na rua batendo perna, está fazendo um curso puxado de francês, esboçando um livro, posta aqui quase todo dia e ainda adora cozinhar à noite e fazer bolos à tarde, mas nem sempre tem a mesma empolgação pra limpar a cozinha - então, façam as contas. E eu não me preparei para as inspeções. (Até porque, na primeira não tinha a mínima ideia de como seria e das duas últimas só me lembrei no momento em que o pessoal já estava aqui do lado de fora.) Logo, o apartamento que o pessoal da inspeção viu é o mesmo que qualquer um veria a qualquer hora que chegasse aqui. Coisas relativamente no lugar. Cama arrumada, talvez algumas louças empilhadas na pia, revistas dentro do revisteiro, móveis no lugar, chão embaixo e teto em cima, enfim, a coisa mais normal do mundo.

 É. Normal pra gente.

 Pelo que me contaram, depois de muitos elogios e congratulações, o normal aqui é viver em casas caóticas, sujas, entulhadas e que várias delas, inclusive, cheiram mal. Uma mulher de um dos grupos ficou tão impressionada que me perguntou, de fato esperando uma resposta, como é que eu conseguia ter uma casa tão "perfeita". E eu respondi:
 - Acho que é porque sou brasileira.
A cara que ela me olhou poderia ser traduzida em "você está brincando com a minha cara?", e eu até entendo, já que a imagem do Brasil nunca é associada a organização.
 Mas nesse caso, estranhamente, ela pode ser.

 Acho que o fato de crescermos em casas com empregadas e faxineiras, faz com que nos acostumemos a morar em casas muito limpas e sempre arrumadas. E aí, mesmo que se vá morar lá longe e se tenha que fazer tudo a gente mesmo, uma vez acostumados com o esquema brasileiro, a gente não consegue mais viver de outro jeito.

 O estranho é que se me perguntarem o que é exatamente que eu faço ou qual a mágica para mesmo não tendo empregada ou faxineira, estar praticamente o tempo todo com tempo livre  e ainda manter minha casa sempre um brinco, eu diria que deve ser algum tipo de paradoxo como o das francesas que se refestelam em comidas maravilhosas e não engordam.

 Mas no fundo eu sei que eu digo não saber o que é que eu faço porque pra mim já é tão normal viver dessa forma que eu nem percebo mais que estou fazendo.

 Já é automático levantar da cama e arrumá-la direitinho, almofadinhas e tudo. Eu nem vejo mais que toda vez que deixo um cômodo eu levo comigo pratos e copos que estavam ali e deixo na pia. Eu nem penso mais ao afofar minhas almofadas ou recolher as revistas. E a faxina semanal, eu gosto de fazer, então nem considero trabalho. Ajuda demais o fato de ter um marido que também gosta das coisas arrumadas, que também cresceu numa casa organizada, e que por isso participa ativamente do processo de manutenção.

 Isso, somado ao fato de ser da terra das empregadas e faxineiras como parte integrante das famílias, faz com que eu simplesmente não aceite, consiga ou conceba viver de outra forma. E claro que ser filha da Dona hoje-eu-vou-fazer-uma-geral com o Senhor minha-filha-leve-um-pires-junto-com-esses-biscoitos completam a história. Afinal, filha de peixe será sempre peixinha, não importa o mar onde a colocarem para nadar.

Comentários

  1. Adorei a resposta à mulher de um dos grupos. Eu queria ter visto a expressão dela.
    Quanto à organização, dá mais trabalho viver em uma bagunça total do que manter um ritmo de organização e limpeza neh? Além de nos sentirmos melhor em um ambiente limpinho...
    Mas numa terra onde se consome tudo o tempo todo, onde colocam tanta tralha neh?! Ahahahaa....

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  2. Pelo que a gente sabe, esse tipo de limpeza a turma daí nao gosta de fazer nao, é por isso que a mulherada daqui vai aí ganhar uns dólares a mais.
    E se voce nao bagunçar, ela nao ficará desarrumada!

    beijinhos.............

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  3. U-huuuu!!! Simone, vc fez mais pela imagem brasileira do que muitos diplomatas! rsrsrs. Tb adoro deixar minha casa arrumadinha, limpa, com tudo no seu devido lugar. Acho que a organização externa é um reflexo da organização interna, do equilíbrio íntimo de uma pessoa (tirando quem tem toc, compulsão por limpeza, etc, claro), sabe? A limpeza e a organização são a base do feng shui, filosofia que procuro praticar em todos os aspectos da minha vida! =) Mente limpa, coração tranquilo, casa em paz.

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